Apenas oito dias para que a belíssima casa de Pascal fosse tombada pelo banco. E Samuel não conseguia parar de pensar nela.
Mais do que ontem, mais do que no dia que viu ela pela primeira vez e quando viu o homem latino desaparecer na sua frente. Como um disco riscado, preso em uma sintonia que nunca enjoava. A sensação era de estar sentido um vício novo nascer, e Goldberg muito bem sabia do que eram feitos os vícios.
A única e ínfima, coisa que rodeava sua mente além naquele momento, do Palácio, obviamente, era a sua pequena adega de casa, que estava diante dele naquele momento. Olhou de relance para o relógio em sua sala. Eram 6:15.
Logo sua esposa se levantaria e logo teria de sair para ir até o trabalho. O momento de tomar uma decisão era aquele. Se aproximou a passos lentos da adega, já sentindo o cheiro da madeira barata. Aquele suporte, menor que sua pia e um pouco mais largo que sua cintura, havia sido um presente de casamento de seu cunhado.
O homem havia dito que a irmã adorava vinhos caros, e que por isso entregaria aquela adega. Não só isso, ele também presenteou o casal com duas garrafas de vinho tinto suave, que desceram como mel pela garganta de Samuel. Um mel que não era doce o suficiente para satisfazer sua vontade por algum açúcar.
Enquanto sua linda esposa havia tomado apenas uma taça de vinho na noite que receberam a adega, Samuel havia tomado as duas garrafas. Culpou o estresse pela mudança, já que ainda faltavam muitas caixas e presentes para serem organizados naquela casa apertada e simples. Se compararmos com aquele palácio…
Ambos acreditaram naquilo, tanto Samuel quanto sua esposa. No entanto, poucas semanas depois, enquanto fazia compras no mercado, passou de frente para uma loja de bebidas, do tipo que era mantida por um homem que tudo conhecia do doce divino que vendia e por outro que pagava por praticamente tudo. Os lucros eram, obviamente, divididos pela metade para cada um. Não era difícil adivinhar para qual deles ansiava mais por esta metade de dinheiro.
— Está safra é maravilhosa, senhor. — O conhecedor dizia, enquanto Samuel mal havia entrado na loja ainda. Ele havia apenas parado de frente para o estabelecimento para procurar pelos vinhos que havia tomado a poucos dias. — Feita no mais perfeito dos barris e dá mais doce das uvas. Tem de provar ao lado de sua esposa… Está aliança é de casamento, não é? E este uísque, nada melhor que uma queimação na garganta para acordar pela manhã. Está conhaque, perfeito para o tempo frio que está por vir. Aqueça-o com um simples isqueiro, e sentirá tamanha perfeição. Magnifique. — Disse num sotaque francês fajuto.
Isto se seguiu por um bom tempo, mas Samuel parecia hipnotizado, ao invés de irritado com toda aquela estratégia de venda. Olhou para cada garrafa, cada marca, cada tampa e tampo, cada pequeno reluzir que o líquido cobre fazia sobre a luz das lâmpadas. Aqueles doces pareciam chamá-lo e, sedento, ele aceitou.
O homem fajuto, conhecedor, talvez, apenas de uma boa estratégia de venda, sorriu ao ouvir que o homem compraria não só duas garrafas de vinho.
Isto foi há quase um ano. Um quase ano conturbado, cheio de delírios. Onde Samuel bebeu, trabalhou e pouco amou a mulher com quem a pouco havia se casado. Um quase ano onde houve vezes em que ele havia voltado cheirando bebida para casa, quando sequer havia saído com os colegas de trabalho para beber. Onde houve um momento onde sua esposa se cansou e implorou que ele parasse com tudo aquilo.
Ela recebeu como resposta um tapa forte em seu rosto. O momento de silêncio que se seguiu disso era mais amargo que todos os copos de uísque que Samuel havia tomado ao longo do ano. Encarando a enorme marca vermelha que se formava no rosto de sua esposa, ele fugiu. Como um covarde.
Seis dias distante e refletindo o fizeram voltar para casa. Sua mulher ainda estava lá, aparentemente abalada e com saudades, mas com medo se ele faria algo de novo. Nunca mais bebeu álcool depois disso.
Substituiu aquele doce por outro, consumindo colheradas de açúcar enquanto ficava agachado próximo a sua, agora vazia, adega. Fazia exatamente isso e consumia sua quarta colher quando notou que o relógio já apontava para as 6:25. Precisava ir para o trabalho.
Correu até seu carro, sem ter nada no sistema além de açucar puro e uma estranha vontade de ir visitar a casa de Pascal. O carro demorou para pegar, era uma manhã fria. Um conhaque cairia bem. Pouco demorou para o motor quebrar o silêncio matutino que se formava naquela garagem. Samuel partiu para o trabalho, sentindo falta de dizer bom dia para sua mulher.
Apesar das saudades, seguiu por uma viagem tranquila. Em trinta minutos estava no banco, a cinco minutos de seu horário. Quando estacionou, notou que o mesmo homem de ontem estava lá mais uma vez, usando roupas finas demais para uma fria manhã de outono.
Sentiu certa pena do sujeito, olhando com maiores detalhes para as roupas que vestia. Usava uma simples camisa preta, com uma blusa finíssima por cima disso. Suas calças eram furadas em vários lugares, e as pontas estavam sujas de terra úmida. Se assemelhava a um ambulante.
No entanto, enquanto ele analisava as roupas do homem, não notou que o mesmo encarava Samuel de volta. Foi pego de surpresa quando percebeu isto.
— É….. — Murmurou mais do que falou, numa tentativa falha de pensar em algo para dizer ou fazer. — Bom dia! — Disse por fim.
— Dia… — O homem disse, se virando e não mais olhando na direção do banqueiro. Ele, Goldberg, agora olhava para o nada e sentia vergonha. Poxa vida, sua mãe havia lhe dado uma educação melhor. Por que ele encarou aquele homem desta forma?
— Desculpe ter te encarado… — Samuel disse, mas o rapaz pareceu ignorá-lo. É oficial, ele me acha um babaca.
O homem era um sujeito truncado, de ombros largos e pele negra, como carvão. Suas roupas não eram farrapos e seu cabelo crespo parecia limpo e bem cuidado. Tamanha figura confundiria a mente de muitos, mas definitivamente não era um simples e pobre vagante.
Samuel matutava isso quando entrou no banco. Mexia nos lábios, coçava a parte de trás da cabeça e imaginava O que teria feito um criolo como aquele aparecer diante do banco e gritar todas aquelas coisas?
Era cansativo imaginar. Alguns colegas de trabalho já teorizaram que ele era um espião comuninista, fadado ao fracasso já que o país capitalista havia enviado o homem até a lua há pouco mais de quatro meses. Todos já consideravam uma vitória para a América e seu glorioso sistema capitalista.
Uma vitória numa guerra esquisita. Não houve sangue derramado nesta guerra; pelo menos nenhum que Samuel compreendesse ou enxergasse. Goldberg olhava para o calendário de seu confortável escritório. Era quinze de novembro de 1969, um ano glorioso por muitas razões, mas nem tantas para o banqueiro.
Tentou abrir a janela, mas ela ainda estava emperrada.
Comments (0)
See all