-Tarde! -Sussurrou um senhor que se aproximava do banco em que eu estava sentado.
O sol das duas horas não o deixavam mentir; era uma linda e radiante tarde.
-Boa tarde, senhor! -Cabisbaixo eu respondi.
-Meu nome é Júlio. Senhor é aquele que nos protege no céu.
-Claro, claro! Mil perdões, sen... Júlio.
-Agora ficou melhor! -Completou Júlio, com uma risada rouca.
Tampando a luz do sol com as mãos, pude acompanhar o movimento já cansado de Júlio, um senhor de barbas grisalhas que, com muito esforço, tentava segurar seu cachimbo e agarrar o banco para se acomodar.
-Quer que eu te ajude, Júlio? -Preocupado, perguntei.
-Posso não ter mais a tua idade, mas não julgue esse livrão aqui pela capa velha e rasgada! -Disse em meio a risadas e tosses.
Observando a cena, tive a certeza de que parei ali por um motivo maior do que poderia imaginar.
Júlio conseguiu se sentar, ajeitando-se ao meu lado num banco feito, provavelmente, para casais apaixonados. Não era o caso mas, se os bancos foram projetados pra que dois pombinhos pudessem sentir o perfume um do outro, o arquiteto merece um prêmio. De plantas e grama cortada, eu apreciava agora o cheiro de cigarro de cereja e conhaque vindo do meu novo amigo.
-O que te traz aqui sozinho, filho? -Júlio me perguntou enquanto ajeitava sua boina e seu blazer marrom.
-Como soube que eu estava aqui sozinho?
-Uma cabeça baixa não mente. Já percebeu como essa praça é bonita na luz do dia?
De tempo e natureza, seu Júlio entendia; o banco em que estávamos ficava em frente à árvore mais alta e lustrosa da praça, que marcava o centro e estendia diversas estradinhas de tijolos. Árvores menores eram distribuídas por entre as passagens e crianças que pulavam felizes.
-É verdade. Queria que algum amigo meu estivesse aqui pra ver. Se é que posso chamá-los assim, afinal são meus últimos dias na cidade mas parece que ninguém se importa muito com isso.
-Nenhum deles pôde te acompanhar nessa? -Respondeu Júlio, pigarreando.
-Pra ser sincero, acho que podiam sim. Mas talvez eu não seja tão necessário quanto pensei. Sei lá, posso estar viajando, mas... é que eu me sinto como uma folha que caiu, e de baixo observa as outras juntas e farfalhando sem mim.
Júlio me observava de sobrancelhas cinzas arqueadas, enquanto acendia o seu cachimbo.
-Pra uma folhinha, você é até que sentimental, moleque. -Júlio retrucou após uma longa tragada.
-Apesar disso -Continuou. -eu vejo verdade no que tu diz. Tenho idade pra ser teu pai duas vezes, garoto. Já me senti como todas as folhas dessa árvore ali. -Disse, apontando para a primorosa árvore do centro. -A verdade é que, como as folhas e as árvores, temos nossas passagens. Crescemos e aprendemos juntos quando é primavera e tudo cheira a rosas e primeiros amores. Nos amamos, nos rendemos e nos doamos porque sentimos que nos fariam o mesmo. E é aí que vem o verão, que aquece os sentimentos, bons ou ruins, e mostra a verdadeira intenção de quem divide o galho com tu. Nesse momento, menino, és uma folhinha que, por acidente, acabou caindo do seu lugar no verão. Se sentindo longe de tudo, de todos, do calor, dos perfumes e do que te faz bem. O que uma porção dessas folhinhas de verão não esperam é que o outono aparece pra chacoalhar as estruturas e reunir a moçada de novo. E é com todos embaixo contigo que tu consegue saber quem é que tá do seu lado e realmente te ama.
-E o inverno, Júlio? -Com lágrimas nos olhos e lábios tremendo, perguntei.
-É, no inverno todo mundo se fode mesmo. -Finalizou, gargalhando, o senhor de oitenta e poucos anos que eu nunca havia visto na vida.
Depois disso, Júlio se levantou, me deu um abraço (que tive que dosar por não saber a validade das costelas), olhou em meus olhos e disse:
-Leve isso pra vida, garoto. A culpa das folhas caírem nunca são delas, mas a decisão de se manter perto é sempre de quem acompanhou seu crescimento. Voe.
Júlio de Almeida Florença morreu três dias depois. Soube porque, de alguma forma, ele descobriu o meu nome e me cadastrou como seu neto de terceiro grau no asilo em que morava. A família do falecido não esteve presente no seu enterro, e nem recorreu ao asilo para o recolhimento do que pertencia ao senhor, sendo assim, enviaram-me por correio uma caixa com todos os seus últimos pertences. Dentre roupas antiquadas, um relógio dourado que marcava três e dezessete (o ponteiro dos segundos ainda mexia freneticamente para cima e para baixo) e um inesquecível cachimbo de madeira escura, encontrei algo que me fez agradecer cada segundo que tive com aquela pessoa.
Anos depois, para onde quer que eu vá, carrego comigo a pintura, colorida até a metade, de duas folhas repousando em um banco de praça. A assinatura de Seu Júlio borrada pelas minhas lágrimas deixou tudo ainda mais charmoso.
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